domingo, 29 de março de 2009

É de comer com os olhos, só com os olhos



Duas vezes, três vezes. Na verdade, era a quarta vez que eu encarava aquela mini tortinha de morango ali. As luzes se acenderam no começo daquela paquera, toda beleza que ofuscava meus olhos, era, ainda, capaz de trazer sabor à minha boca. Assim com linda, imaginava como igualmente saborosa. E o fato de um vidro nos separar, tornava os morangos tão mais brilhantes, aquela separação criava tantas suposições, tantos pensamentos avançados. Posso dizer, eu estava hipnotizada, completamente. Então, aparece a vendedora e estraga todo aquele momento de sublime contemplação: “Moça, a senhora vai querer alguma coisa?” “Não, tou só olhando” Confesso que o “só olhando” era puro eufemismo da minha parte, como assim “só olhando”? Olhar não tira pedaço, e daquela tortinha eu já havia tirado vários. Tanto que sai dali de barriga cheia. Pronta pra dizer: “Por favor, embala o resto pra viagem, que eu já tou satisfeita”


Não, eu não estava satisfeita. Nem de longe estaria, mas até aquele momento o que tinha acontecido entre mim e a torta, bastava. Sempre preferi a conquista, e ir com calma fazia parte de todo aquele jogo. Estávamos na fase da apreciação visual e só depois dali aconteceriam outros contatos. Várias outras vezes estive naquela mesma padaria, só pra estar pertinho dela, ensaiei comprá-la só pra mim. Acontece que a essa altura nossa ligação tinha sido promovida de apenas material, para afetiva. Eu gostava dela, e só toparia levá-la pra casa quando compartilhássemos tão nobre sentimento.


Mas sabe como é, o tempo passa, a padaria não fazia mais parte do meu trajeto, muito chocolate e muito mousse na minha vida. E não é que a mini-torta de morango acabou sendo esquecida? Quero dizer, temporariamente esquecida. Bastou passar uma única vez naquela calçada e dar apenas uma olhada de relance naquela prateleira, apenas uma olhada. E não é que tudo voltou? Aquela explosão de sabores, aquela paixão arrebatadora e as mil estrelinhas piscando nos meus olhos. Dessa vez era diferente, era o reencontro. Eu e ela, ela e eu.


Apesar do breve esquecimento, eu não podia negar todo o entusiasmo de relembrar todas as ideias a respeito do seu sabor, tudo associado à beleza incomparável. Decidi que havia esperado tempo demais e aquela era a hora mais oportuna, foi assim que meu coração disse e assim foi feito: “Uma tortinha daquelas, por favor?” A vendedora que nunca tirou a cara amarrada, veio pra mim com o desprezo habitual: “Não tenho troco e aí?” “Pois me vê o troco daquele bombonzinho de caramelo” “A torta é pra comer aqui?” “Não. É pra levar” Antes de terminar o “ar” do “levar”, meu rosto se encheu de felicidade.


Sim, ela era minha! Sim, nós íamos juntas para minha casa! E os caramelos? Esses ficaram preteridos em algum canto da minha bolsa. O que importava era aquele docinho de formato perfeito, perfeitamente embalado em uma caixinha de plástico. Sai tão envaidecida, ostentando aquela “belezura” pelas ruas, andava em ziguezague, brincava de quase derrubar a torta. Tudo no maior estilo: não tenho/ tenho/ triste/ alegre.


Cheguei em casa, coloquei a MINHA sobremesa na mesa, e ia prová-la (claaaro!), entretanto, não sem antes cumprir todo um ritual. Eu que nunca tenho cerimônias para me alimentar, fiz questão de tirar a tortinha da caixinha e comê-la pedaço a pedaço. Tudo com garfo e faca, na maior delicadeza.


E finalmente, último pedaço. E aí? Os mil sabores? As estrelinhas? O supremo gosto da melhor torta do mundo? Os vários sonhos com esse dia? AM, AM, vejamos. Bem, se toda aquela euforia não tivesse sido superada, certamente eu ia querer trocar a torta sob o argumento de a confeiteira ter sofrido uma desilusão amorosa e errado a receita. Mas euforia terminada, só restava a realidade, a dura realidade: Primeiro, eu não sabia se a torta tinha sido feita realmente por uma confeiteira, e não por um confeiteiro. Segundo, não saber quem a fez, já é indicio suficiente de que eu não sei pingo d’água sobre a vida amorosa do autor. Terceiro, a desilusão amorosa era minha, só minha. Tanta expectativa para três morangos meio moles, uma papa de leite condensado insossa e uma massa, que no caso era a melhor parte.


Eu podia odiar essa sobremesa pelo resto da vida por conta da decepção causada a mim, mas acontece que ela não fez nada demais, além de ficar paradinha me olhando. A culpada era eu, exclusivamente eu. Por criar tanta fantasia e acabar frustrada na pia, lavando o prato e os talheres.


Fui para o quarto, de cara emburrada, atirei tudo que estava ocupando o lugar do meu corpo na minha cama, inclusive a minha bolsa, e dela saltam os caramelos, lembra? Justamente aqueles que eu deixei de lado, ironicamente eles. Olhei com desprezo, mas não resisti. Devorei um a um, sorrindo de toda aquela besteira que eu mesma havia inventado. E desfrutava de um momento especial como poucos, com caramelos na boca e um pensamento que mudou meu dia e os dias que seguiriam.


Não importa com quantas tortas pomposas eu paquere. Não importa quantas fantasias eu crie. Não importa localização, em uma prateleira decorada ou um canto qualquer da bolsa. O que importa é que a vida é recheada de sabores amargos, doces, apimentados, salgados, suaves e dissabores. Acrescento a vulnerabilidade do paladar, o que faz você preferir beijinho de coco e eu preferir brigadeiro. E agora mesmo, eu estar devorando uns beijinhos e você estar ai se empanturrando com brigadeiro. Se um dia eu acordar com vontade de comer maracujá com feijão, compreenda. Paladar se modifica, descobre e redescobre. Portanto, novos sabores devem ser experimentados, novas combinações de sabores, novos acompanhamentos.


Contanto, não se esqueça: algumas coisas foram feitas para serem comidas apenas com os olhos. E outras coisas foram feitas para ficar em um canto qualquer e em seguida ressurgirem com o bom e velho sabor. Porque nem todo morango que brilha é gostoso, e nem todo caramelo de troco é inteiramente refutável.

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