quarta-feira, 12 de maio de 2010

Para minha avó


Tem certas coisas que soariam melhor se fossem cantadas ao pé do ouvido, como uma doce canção de amor. Não sei fazer melodias e muito menos tenho a voz afinada e mesmo a senhora dizendo que eu falo como um passarinho, não me convenceu. E eu dou, não a linda canção de amor que a senhora merece, mas algumas palavras reunidas, que querem dizer justamente aquilo que eu cantaria desafinando e com os olhos marejados: o nosso amor.

Peço desculpas, se em algum momento, eu faltar com o sentido. É difícil escrever com tanta emoção, ou talvez seja mais fácil, pois alguns pensamentos me antecedem e explodem como bombinhas de São João em um peito bombardeado de emoções. Tem sido tudo tão estranho...

Desde que o Paulo Matheus ligou para a Tia Dineide contando o que havia acontecido, não pude pensar em qualquer outra coisa, que não representasse o fim. “Acabou?” “A pessoa que eu mais amo no mundo partiu, e agora?” A sensação se revelou angustiante, uma coisa que entre coração e cabeça, céu e terra, não se descreve em palavras, não se descreve mesmo nos maiores mistérios dessa coisa que se compreende como vida. Mas eu ainda tinha a senhora em mim, tinha seu cheiro e o leve toque do seu joelho na minha mão esquerda. Seus olhos me olharam no último instante possível e não era tão complicado ter paz, muito menos respostas.

No momento em que a cabeça passou a funcionar guiada pelo coração, uma linda história de amor se formou em meus pensamentos... E histórias de amor não se acabam. Não acabou!

Cronologicamente, não lembro como lhe conheci, queria contar que foi em uma linda manhã de vento suave e sol fraco, quando estivemos juntas colhendo flores e a senhora sorriu para mim, e eu por achar seu sorriso encantador, lhe amei desde aquele instante. Mas não, não foi assim. Mamãe diz que desde sempre seu colo era especial para mim, que seu aconchego me embalava e eu dormia tranqüila quando tinha a senhora.

Pra ser sincera, só lembro as brigas por causa das idas ao seu Arão e do quanto a senhora gostava de entrar na frente da TV e estacionar ali, impedindo qualquer outra visão, só os robes de cor clara e sua silhueta gordinha. E eu já lhe amava nessa época, amava porque aprendi que se ama a família. E, além do quê, lhe amar nem era tão difícil para mim, mesmo com tantos resmungos, eu reconhecia algo de forte, que quando criança eu não compreendia bem, porque criança só ama. E não é só porque eu passava o dia inteiro naquela sua casa rosa, é por mais, é porque a vida se encarrega, mesmo com suas curvas e desencontros, de unir corações amigos.
Durante muito tempo, sua presença foi ofuscada, aliás, refaço, digo que sua presença foi resguardada para o momento certo, a propósito, tivemos nosso momento certo e é isso que eu chamo de destino.

Vovô era um ser lindo e calmo, e qualquer pessoa normal diante dele, parecia chata e indócil demais, a concorrência era severa. Tinha também a excepcional Mana, com o jeito nervoso e zeloso mais cativante do planeta. E nossos primeiros atritos foram exatamente por causa dela, por causa do seu ciúme infantil, vovó. A criança ali era eu, mas a senhora insistia nas ceninhas e no apego exagerado, eu só sorria, por entender que quando se tem uma filha brilhantemente cuidadosa, tudo que se quer é que todos os carinhos e atenção estejam voltados pra você.


Foi pelos olhos amorosos de Mana, que eu passei a lhe enxergar com olhos de mãe, você era uma criança adoravelmente ciumenta, era um bebê pra gente. A senhora persistia em me provocar, eu não me importava, porque nós todos tínhamos a Mana, eu, a senhora, a mamãe, o popó, a família inteira, ela era nosso grande elo, nosso grande coração acolhedor. É, mas corações grandes têm planos igualmente grandes, e foi assim, ela precisou assumir esses planos maiores e nos deixou. Mas me deixou preparada, eu já sabia ser sua mãe.


Por falar em mãe, minha mãezinha, sua caçula sem juízo e de rezas milagrosas, ficou desnorteada, quando a irmã amada partiu e mesmo querendo dar todo o apoio que era possível, sem fugir as obrigações que não cessaram, teve que nos deixar sozinha em muitos momentos. Não me recordo de tempos mais difíceis, eu, a senhora e aquela casa carregada de lembranças. Todos os dias nós tentávamos fazer diferente, conversar outras coisas, assistir outros programas e construir uma relação de confiança.


Agora, eu já sabia exatamente porque lhe amava. Qualquer pessoa que conseguisse sobreviver àquela invasão de tristeza sem se maldizer da vida e ainda distribuir paz e serenidade, já teria a minha admiração. Mas se, além disso, essa pessoa conseguisse oferecer consolo e carinho aos demais, além da minha admiração, teria o meu amor, meu mais sincero amor.


Quantas vezes choramos juntas nas longas madrugadas? Eu olhava para a senhora, e pensava: ‘que injustiça! Não foi direito fazer isso com ela, eram dois olhos velhinhos inundados de lágrimas, isso não foi certo... Não foi’ Mas aí a senhora me respondia com outro olhar: ‘ a vida é mesmo assim... ’ Eu nunca sabia o que falar, não podia suportar senão sem abaixar a cabeça, toda aquela dor que era sua, mas era também de quem lhe amava. Mas aí, quando o choro partia de mim, a senhora segurava firme minhas mãos e me convidada a rezar, ensinando sobre os desígnios de Deus. E naquela situação, eu só chorava a saudade de alguém amado, a senhora além da saudade, chorava a ausência de uma parte importante de seu corpo.


Eu falava de destino, falava em um momento certo, mas nunca imaginei que ele fosse acontecer justamente no momento mais complicado de nossas vidas. E hoje, eu percebo que não haveria momento mais apropriado, eu sabia cuidar da senhora, sabia dos remédios, das comidas, dos carinhos e de admiração, sabia ficar impressionada com o seu passado de lutas e o presente de superação.


Teresina agora era seu lar e muitos apostaram que a senhora não resistiria a tantas mudanças violentas, mas a senhora na insistente mania de surpreender positivamente, voltou a sorrir, não que houvesse deixado algum dia, mas voltou a viver como antes, com caretas, implicâncias e muito bom humor, embora não sem saudades e recordações. A senhora estava ali, com novas rugas, novas limitações, mas ali, com a implacável sede de vida que lhe era característica. Como a água, transparente e suave, se moldando a um novo recipiente, a uma nova vida.


Essa vinda para Teresina fez com que parte de nossa família ganhasse a oportunidade de lhe conhecer mais de perto, ai a senhora foi invadida de mais amor e mais cuidados. Todo mundo querendo ficar com a vó espirituosa e cheia de alegria, eu podia ter morrido de ciúmes, porque a senhora era quase só minha até então, mas eu ficava satisfeita demais, eu sempre gostei de dividir alegrias e a senhora era a minha maior. Netos, bisnetos, filhos, sobrinhos, médicos, enfermeiros e amigos, todo mundo irremediavelmente apaixonado! Por que a senhora ultrapassava o que chamam de uma pessoa cativante, a senhora era mais, era alguém muito mais!


E eu via tanta gente a minha volta, tanta gente que tinha, como se diz, tudo para ser feliz. E ainda assim, procurando motivos para reclamar da vida e empecilhos para amar. E então, eu pensava na sua história, no quanto a vida havia sido traiçoeira com a senhora e tudo que eu via era amor em seu coração, paz em seu olhar e felicidade para quem ousasse entrar em contato com seus pensamentos.


Meu Deus! Eu queria que todo o mundo soubesse que podia haver felicidade mesmo diante dos maiores desatinos, porque a senhora me mostrou assim, mas foi a vida que me ensinou que isso não era pra todo mundo, infelizmente, porque não se ensina ninguém sobre amar a vida e sobre ter fé. Só a vida pode ensinar e ela lhe ensinou.


Sua pureza quase infantil, até me deixava constrangida, era duro dizer que o mundo não era tão lindo, quanto a senhora merecia que fosse. Não que eu não lembrasse de sua fortaleza, mas ai eu me via tendo que responder o porquê de algumas pessoas insistirem em fazer mal a outras, e nesse momento seus olhos eram ainda mais piedosos, o que responder ao coração mais puro do mundo sobre a obscuridade de outros corações? Minha única vontade era lhe abraçar e dizer: “Porque nem todo o mundo é lindo e honesto assim, princesa”.


Era desconcertante e eu me sentia suja por saber das maldades que eu não queria que a senhora soubesse. Mas dava pra esconder alguma coisa de sua curiosidade? Não, não dava! Nada lhe escapava, desde os segredos alheios às notícias dos jornais. Tudo a senhora sabia. E se não sabia, procurava meios de descobrir, utilizando aquela sua inteligência incomum e o dom de elaborar razões. Toda a família ficava inquieta com medo de suas reações: “com essa a mamãe vai ficar arrasada” “tadinha da vovó...” Mais que nada, lá estava a senhora com a sua sublime capacidade de entendimento: “a vida é mesmo assim...” E a gente que acabava aprendendo, ou só admirando mesmo, porque não é nada fácil encarar a vida com tanta simplicidade. Mas a maldade não, essa a senhora não entendia. É... Não se pode entender sobre aquilo que não se conhece, não de dentro pra fora... Compreendo.


Recordo-me de um dia tenso em que ficamos juntas, foi esse dia véspera da minha prova de vestibular. Toda aquela expectativa sobre decidir o meu futuro, porque é assim que as pessoas dizem sobre o vestibular, e era assim que todo mundo me dizia. Decidir o futuro é algo muito assustador e eu estava assustada. Então a senhora deixou que eu pintasse suas unhas para diminuir a tensão, eu, quando lembrava o que me esperava no dia seguinte, borrava nas laterais, além dos borrões, ainda inventei de desenhar umas florzinhas, que eu disse que eram suas filhas.

A senhora sorria e elogiava minha coordenação, quanta adulação, hein vovó? Todo mundo que viu suas unhas, se esforçou pra acreditar que aquilo eram flores... E foi nesse momento, que eu entendi que a decisão da minha vida não estava em uma prova, não estava em profissão, ou qualquer coisa parecida, a minha vida era decidida a todo o momento, principalmente quando eu escolhia a quem amar e sobre quem eu deveria cativar comigo. A senhora estava comigo! Eu não precisava de uma aprovação, eu só precisava da sua felicidade e carinho. Passar no vestibular não era nada, se eu não pudesse dividir essa alegria com a senhora, se eu não tivesse sua alegria comigo.


O que significava um vestibular ou qualquer coisa mundana diante da magia celestial de seu sorriso? Sempre preferi magia à coisas mundanas, o que tiver de acontecer por essa bandas da terra, só se justifica se trouxer algo de mágico consigo. Ah, mas eu fui aprovada e isso de fato nem me importava tanto, ou o mínimo que você pode se importar, quando está diante de muitas pessoas queridas felizes com você, tomando para si sua felicidade, essas pessoas incluem primordialmente a senhora. Essa sensação foi inenarrável e eu nunca tive a oportunidade de lhe agradecer por ela, porque foi a senhora quem me fez cair na real e enxergar com as devidas proporções aquele momento, além de me deixar fazer macacada em suas unhas e me proporcionar os abraços mais aconchegantes, que me deixava tranqüila para enfrentar um exercito inteiro, se assim precisasse.


Ah vovó, a sua imagem, seu amor, seu rostinho lindo, me incentivaram e me incentivam a ser alguém melhor e o amor que eu distribuo ao resto do mundo, é reflexo do nosso amor e da sua simplicidade que me deixou alguém mais leve, capaz de distribuir palavras de carinho a estranhos e ser sincera sem ofender. Eu tento ser grata com a vida, porque dentre tantas pessoas espalhadas por aí, eu fui ficar cara a cara justamente com a mais especial. Tentar retribuir para o planeta, o amor que eu recebi da senhora, é a menor coisa que eu devo fazer, não acha? Pois é, sempre me sinto em dívida com a vida e a culpa é sua. . .


E o que falar do criador de tudo? Aquele sobre quem a senhora tanto me falou.. Mas quer saber? Tudo que eu aprendi sobre Deus com os seus ensinamentos bíblicos e as orações ao anjinho da guarda, não se comprara ao testemunho da existência dele, dado através da senhora. Sim, Vó, a senhora me fez sentir a viva presença dele em minha vida, perante seu abraço. A senhora passava os braços pela minha cintura e de forma carinhosa deixava meu corpo segurar o seu, e Deus estava ali juntinho da gente. Era uma benção dele, o amor. Era o presente dele a mim, ter o seu amor, sua presença em minha vida. Deus lhe deu de presente a toda nossa família, e eu só tenho a agradecer.


Se o amor e a capacidade de amar nos fazem ser aquilo que somos: seres-humanos! São as histórias e lembranças de amor, que nos fazem ser aquilo que não somos: imortais! Em histórias de amor, não há lugar para fins, porque sempre que houver uma pessoa disposta a contar e outra disposta a ouvir, as histórias de amor não se perderão.


Viver histórias de amor é, de alguma forma, ir ficando por aqui... Ir deixando um pedacinho de vida em cada doce recordação. Sua linda passagem pela terra, me segura firme no chão e deixa meu pensamento voar ao seu encontro, e quando eu vejo alguém desacreditado, me dá logo uma imensa vontade de falar sobre a gente, sobre a senhora. Cada vez que eu paro para relembrar tudo que passamos juntas, encontro uma coisa nova para amar, me diz se isso pode ter fim? Eu respondo: Não!


Pois é, vovó... Ainda bem que construímos uma história de amor, e ainda bem que muita gente que eu amo, tem uma história sua para contar também. Somos várias histórias reunidas, que lhe trazem aqui, quando a saudade aperta. Usando do seu jeitinho “a vida é mesmo assim”, eu me conformo, mesmo com a saudade de abraçar forte seu corpo fofinho e envergado. Ah, peço desculpas se só agora me dei conta de que apesar das suas reviravoltas milagrosas, um dia a senhora teria que ir, mas não falo em uma ida definitiva, a senhora ainda está aqui comigo! Nosso amor é infindável e quando eu lembro todas as suas lições configuradas em Deus, seu abraço e sorriso - me fortaleço com a certeza: Eu te amo com todas as minhas forças e isso nunca acabará!